Quando você pensa em história e formação do Brasil, quais são as principais imagens que vêm à mente? Um palpite educado seria dizer que provavelmente tem a ver com caravelas, Império e vários outros elementos ensinados na escola sobre a colonização dos portugueses.
Talvez você até pense em escravização. Mas, a não ser que tenha estudado especificamente sobre isso, é pouco provável que você consiga falar como os povos africanos trazidos para o Brasil trouxeram conhecimentos que impactam até hoje a forma como a sociedade brasileira vive.
É que existe uma outra história do Brasil além do que o senso comum ensina, sob a perspectiva das populações negras. Essa história, que é oral, passou de geração em geração pelos sábios, chamados pela cultura africana de griôs. Apesar de não estar na maior parte dos livros, ela reflete no nosso comportamento e organização como povo até os dias de hoje.
Entenda, a seguir por que, quando o assunto é dinheiro e tecnologia no Brasil, é impossível não falar dos povos africanos que nos formaram. Tudo isso a partir da história de Chico Rei, um dos primeiros homens negros escravizados a se tornar rico em território brasileiro.
Quem foi Chico Rei?
A história de Chico Rei é o fio condutor para falar de África e do tamanho da importância do continente, do ponto de vista cultural e econômico.
Galanga – verdadeiro nome de Chico Rei – era descendente do reino do Congo e foi trazido para o Brasil para ser escravizado junto a seus filhos e esposa. As mulheres da família não resistiram ao trajeto e faleceram no caminho.
No Brasil, trabalhando com mineração de ouro em Ouro Preto, Minas Gerais, Chico Rei conseguiu comprar a própria liberdade, do seu filho, de seus conterrâneos e, ainda, comprar a própria mina de ouro, tornando-se um homem rico.
“A história contada há gerações é a de que ele era um príncipe originário do reino do Congo, que no século XIV era um reino extremamente próspero, mas que foi destruído justamente pelo início da escravização moderna. O reino do Congo, por exemplo, foi um dos primeiros reinos a usar moeda para a troca de produtos. A moeda era o Nizimbu, que na verdade era uma concha, búzios que se encontrava em determinadas praias do Congo. Essas reservas de moedas eram exclusivas da corte real. Isso é importante pra gente entender o que é enriquecimento na África.”, conta a historiadora e mestre em história africana, Carolina Maíra Morais.
Nos séculos XVI e XVII, o reino do Congo foi sendo esfacelado pelos portugueses, com a utilização de armas de fogo. “De fato, pessoas que faziam parte da corte real foram aprisionadas e vendidas como escravos para o Brasil. Então, é muito possível que o Chico Re, de fato, fosse da corte real do reino do Congo”, complementa a historiadora..
A história de Chico Rei não é mera anedota: é um símbolo, a esperança de outras pessoas escravizadas em conseguir uma vida diferente. “Chico Rei é um redentor da possibilidade de enriquecimento para quem sequer era considerado como ser humano.”
Mas o que chama atenção nessa história é: como Galanga conseguiu quebrar o ciclo de escravização e se tornar uma das pessoas mais ricas daquele tempo? A resposta está no conhecimento e tecnologia que o seu povo tinha e carregou consigo para o Brasil.
Tecnologias africanas: como podemos visualizá-las no Brasil?
Boa parte das pessoas aprendeu na escola que o objetivo da escravidão no Brasil era trazer força de trabalho pouco qualificada. O que pouco se fala, no entanto, é que houve muita estratégia envolvida nisso, principalmente na escolha das regiões africanas de onde se trouxeram pessoas sequestradas.
Tudo isso porque esse povo que foi escravizado trouxe tecnologias que não existiam no Brasil até então. De acordo com Joyce Prado, cineasta e diretora do filme “Chico Rei Entre Nós”, não há coincidência alguma nessas escolhas.
“O tráfico transatlântico visava a expertise e o conhecimento africano sequestrado e não remunerado. Esse tráfico dividia a costa africana a partir do que eram as especialidades de cada território. A gente tem a costa do ouro do povo Ashanti, região onde hoje é o Gana. Também havia a costa do café, a costa do arroz… então a costa da África era dividida a partir dos conhecimentos que se buscavam naquele território. Isso é uma das principais coisas a serem ressaltadas quando a gente fala de tecnologias, de transferência de tecnologias”.
Outro ponto que encontra pouco destaque nos livros de história é que essas pessoas escravizadas trabalhavam com atividades que não eram exclusivamente rurais.
“Também estamos falando de pessoas que atuavam na parte de contabilidade, escrita, marcenaria, alfaiataria… então você tem uma série de outras práticas e conhecimentos que também são realizados por essa população negra trazida escravizada”, destaca a cineasta.
Em outras palavras: os colonizadores não tinham os conhecimentos e tecnologias necessários para explorar as riquezas do território brasileiro. Para corrigir isso, trouxeram pessoas de povos especializados nessas riquezas, como conta Carolina.
“Quando a gente fala da região de Minas Gerais, por exemplo, na cidade de Sabará, toda a exploração de minério que houve por lá nos séculos XVII e XVIII foi feita por uma mão de obra específica que saía da costa do ouro, onde hoje é chamado Gana. Traziam ferreiros, ourives, pessoas que trabalhavam com esses minérios no continente africano como uma mão de obra específica para trabalhar dentro das minas de Sabará”.
Ou seja, o processo de escravização não foi só a venda de seres humanos, mas a venda de pessoas especializadas que trouxeram tecnologias que os portugueses não dominavam.
Mais do que escassez, tecnologia e riqueza
A música “Vida Loka parte II”, dos Racionais MC’s, levanta a seguinte questão: “Preto e dinheiro são palavras rivais?” Respondendo: não, não são palavras rivais. São palavras que sempre estiveram próximas.
Voltando à história de Chico Rei, ela coloca essa perspectiva em xeque desde o século dezoito. E é bom lembrar que a história das pessoas negras é milenar, como destaca Carolina.
“Nós éramos aqueles que criaram o mercado, que criaram as feiras, que faziam o comércio e, num determinado ponto da história, nos tornamos mercadoria. Chico Rei recupera essa memória do Congo dizendo: não, nós continuamos sendo mercadores, sendo aqueles que têm o direito de enriquecer e em uma figura, uma história, uma vida, juntar as palavras preto e dinheiro”.
As tecnologias africanas criadas pelos ancestrais ainda são usadas no Brasil até os dias de hoje. Não existiria exploração de minério, agricultura, construção civil, marcenaria, metalurgia, sem as pessoas africanas escravizadas.
Sobre este ponto, a cineasta Joyce Prado destaca: “Não é que as pessoas escravizadas contribuíram, elas fundamentaram toda a infraestrutura para que se existisse uma economia brasileira. Onde se formou a primeira faculdade de engenharia de minas no Brasil? Em Ouro Preto. Porque, no século XIX, essas pessoas, acadêmicos que fundaram a faculdade, entraram na mina e analisaram a tecnologia negra empreendida dentro desses espaços. A partir disso, desenvolveram metodologias que são as bases das maneiras como no Brasil se pratica a extração de minérios até hoje”.
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Chico Rei ainda vive
Não só Chico Rei, mas todos os grandes exemplos de pessoas negras escravizadas no Brasil ainda vivem nas pessoas negras.
Dados do IBGE de 2018 mostram que 75% das pessoas que vivem em extrema pobreza no país são negras. Afinal, para cada Chico Rei existiram muitos outros que tiveram a sua vida, liberdade e possibilidade de tornar os seus filhos bem sucedidos, nula.
Depois do fim da escravidão, pessoas negras enfrentaram barreiras para estudar, votar, trabalhar, e ter plenos direiros como as pessoas brancas. E esse desequilíbrio histórico não muda da noite para o dia.
Por outro lado, é importante restaurar a autoestima do povo negro relembrando o seu papel fundamental na história do mundo. Além de manter as formas de organização ancestrais que permitiram às pessoas negras resistirem e serem exitosas até os dias de hoje.
Esse legado ancestral e tecnologia milenar vivem até hoje, e podem ser a base de transformações importantes. Chico Rei pode ter sido apenas um homem, mas símbolos duram para sempre.
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